14 anos das últimas loucuras de Evan Dando pelo Brasil

O lendário Evan Dando, hoje com 51 anos, já veio ao Brasil três vezes: em 1994, 1997 e 2004. As coisas que me fascinam nessas excursões pelo Bananão de gente que faz acontecer são, é claro, as histórias que ficam por aqui. Afinal, muitas só poderiam mesmo acontecer nessa terra abençoada, como quando o vocalista dos MDC (Millions of Dead Cops) pegou pneumonia porque, quando foi fazer um show no Sul, teve como acomodação o chão de um acampamento de sem-terra. Isso depois da banda ser levada de kombi de São Paulo a Porto Alegre.

Conta a “biografia” de Evan que ele aprendeu a gostar de música ouvindo bossa nova, nos anos 70, por conta de seus pais. “Eu adoro a música brasileira, principalmente João Gilberto e Sérgio Mendes”, já declarou.

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Evan se apresenta no M.2000 Summer Concerts, em Santos, 1994

A primeira vinda de Evan aconteceu no M2.000 Summer Concerts, um festival de música patrocinado pela marca de tênis famosa nos anos 90, de mesmo nome. A ideia era transformar a cidade de Santos (mais precisamente a Praia do Boqueirão) na Califórnia – pelo menos por um dia. Foram dois dias de shows, um em janeiro e outro em fevereiro, que aconteciam das 19 às 3h da manhã, coisa impensável nos dias de hoje. Detalhe: era tudo de graça!

A primeira noite, em janeiro, reuniu artistas como Chico Science, Gabriel, o Pensador, Cidade Negra, Fito Paez, Shabba Ranks, Chaka Demus & Pliers, Inner Circle e Three Walls Down. O público foi insano: mais de 180 mil pessoas ficaram amontoadas na praia. Evan tocou com seus Lemonheads só na segunda noite, em fevereiro, ao lado de Deborah Blando, Raimundos, Dr Sin, Mr Big e Rollins Band. Ali o público foi mais modesto: 100 mil.

Não se tem muita notícia de como foi aquela apresentação do Lemonheads, mas uma coisa é certa: seu auge era aquele, ou talvez tinha acontecido em coisa de dois anos antes, o que não os diminuía em nada, até porque, naquele ano, o disco “Come on Feel” tinha sido recém-lançado. Os Lemonheads vinham com sua melhor formação de todos os tempos, com David Ryan na bateria e o australiano Nic Dalton no baixo. Evan disse que não se importou muito com as condições que envolveriam o show: “eu só queria vir tocar na América do Sul”, contou à Folha. Teve gente dizendo por aí que durante a apresentação dos Lemonheads, uma chuva torrencial atingiu a cidade de Santos – e que tinha gente chorando do início ao fim. Dá pra entender: Evan é um cara que conseguiu tocar o coração de muita gente. Segundo ele, o show não foi muito “calibrado”: em 1997, às vésperas de voltar ao Brasil pela segunda fez, disse à Folha, “quando nos apresentamos há três anos aqui, pensei: ‘bom, estamos indo para a América do Sul, vai ser fácil achar cocaína’. Estava enganado. Fiquei três dias trancado no hotel no Rio e nada. Consegui mais tarde, mas, na hora do show, o efeito passou. Não estava inspirado para tocar.”

Naquele ano de 1994, uma outra apresentação estava marcada para acontecer no Rio de Janeiro, mas foi cancelada. “A polícia se recusou a aparecer no show. Não sei muito bem o que aconteceu. Acabei dormindo o dia todo”, justificou Evan.

A segunda vinda, em 1997, aconteceu para não somente um, mas cinco shows, todos em meados do ano, sendo dois só em São Paulo, no antigo Palace, em Moema, zona sul da capital paulista. A formação contava com Murph (baterista, do Dinosaur Jr.), Kenny Lyon (tecladista e baixista) e John Strohm (guitarrista, do Blake Babies), e, desta vez, “Car Button Cloth” tinha sido o último disco lançado. No Palace, os ingressos custavam R$ 25, o equivalente a cerca de R$ 120 nos dias de hoje. Praticamente não há relatos sobre essa passagem dos Lemonheads por aqui. Só um lembro de ter lido um único testemunho, quando um fã conseguiu parar no backstage do show no Rio (que aconteceu no festivalzinho Skol Rock) e acompanhou uma entrevista da banda com a MTV Brasil. Evan só falou groselha, em especial de suas experiências com OVNIs. A entrevista parece ter sido tão ruim a ponto do material nem ter ido ao ar.

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Evan e o vocalista do All Systems Go! dividem o palco

Em 2004, chegou a vez da última passagem de Evan por aqui. Foi talvez a máxima do estouro e você já vai saber por quê. Em maio, Dando dava as caras para uma série de shows pelo território brasileiro um ano após lançar seu disco solo “Baby I’m Bored”. Ele tinha parado de tocar com a alcunha de Lemonheads em 1998 e voltou – adivinhe – justo durante a sua última passagem pelo Brasil.

Shows estavam marcados para São Paulo, Londrina, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia, mas sabe-se lá como, ele foi parar também em Taubaté, tocando numa pocilga qualquer.

Em São Paulo, o show foi no DirecTV Music Hall (antigo Palace). Evan subiu no palco, lógico, atrasado. Dizem os reviews da época que o que se viu foi um Evan chapado, com os olhos vermelhos, sem voz e desorientado, fazendo o contrário do que confessou à Folha: “estou limpo agora. Consigo me divertir muito mais; antes, precisava me drogar para fazer qualquer coisa”. Quem esteve na casa naquela noite pode não ter visto um show competente, mas sim uma apresentação histórica, na qual Evan até se meteu a tocar bateria logo no começo da apresentação. O vocalista de uma das bandas de abertura, a All Systems Go!, dividiu o palco com os Lemonheads, cantando utilizando um papel com as letras. Tudo improvisado. Ali Evan bebeu, deu tapa no roadie, errou várias letras, berrou no microfone, recomeçou umas três canções. Ficou até sozinho no palco, cantando as comoventes canções de “Baby I’m Bored”. Dizem que tudo isso só foi possível depois de uma boa dose de cortisona e que não havia setlist: tudo era improvisado pelos músicos. Dessa vez, quem acompanhou Evan foram Kenny Lyon (baixo) e George Berz (bateria).  Ao fim de sua performance, tudo que Evan conseguiu dizer, foi: “tudo bem, vocês pode jogar coisas em mim”! No fim das contas, se não for pra ver um astro da música aprontando em cima do palco, qual a graça do rock and roll?

Rodando pela cidade, Evan pegou pesado. Depois do show no DirecTV Music Hall, um dos personagens mais icônicos da noite paulistana, o “jornalista” Humberto Finatti, jura que foi abordado por um comparsa de Evan no clube A Lôca, que ficava na região central de São Paulo. Finatti descreve que a sua grande missão daquela madrugada foi arranjar um pó mágico para Evan Dando. “Quando passei pelo bar em direção ao caixa, apenas vi aquele sujeito loiro, totalmente ‘travado’, sentado no chão do lugar, com as pernas dobradas em posição de lótus e sem conseguir abrir a boca pra falar absolutamente nada”, relatou Finatti sobre o final de sua noitada.

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Em Taubaté, desenho de fã foi parar no bumbo da bateria

Evan foi parar ainda em dois programas de rádio, na Brasil 2000, primeiro em um comandado por Tatola, uma das lendas do rádio brasileiro. Tatola contou que botou Evan pra falar com uns ouvintes e tudo que ele fez foi esculachar a galera, até acabar expulso da rádio. Depois, rolou um pedido de desculpas ao mestre Kid Vinil, então diretor artístico da emissora. Numa outra hora, foi parar no Garagem, que eu ouvi: Evan falou um pouco sobre o Nirvana, escolhendo umas das músicas que tocaram. Optou por “Sappy”, mencionando que “Serve the Servants” era uma de suas faixas favoritas de “In Utero”. Contou a história de quando Kurt Cobain, após assistir a uma apresentação dos Lemonheads, o convidou para tocar num ensaio do Nirvana, em 1993. Evan disse que ficou na bateria. Paulo César Martin, do Garagem, anos depois me contou um pouco dos bastidores daquela noite: disse que Evan apareceu no estúdio completamente moído e fedendo a vômito. “A gente não via a hora do cara se mandar!”, contou. Paciência: ninguém é perfeito! A alma, a cabeça e o coração dos Lemonheads foi também ao programa Gordo-a-Go-Go, de João Gordo, na MTV Brasil, onde cantou duas músicas: “Sorry Somehow” (cover de Husker Du) e seu clássico “My Drug Buddy”, a única que foi ao ar. Evan gostava de se jogar na noite: apareceu também numa balada na casa D-Edge, onde a banda Minotauro fez um show e João Gordo discotecava. Agitou na pista durante a noite inteirinha e ainda fez questão de anotar o site da banda num guardanapo.

Em Taubaté, fez um show não me lembro onde. Era num ginásio de escola, ou algo assim. A única história que fiquei sabendo daquele dia veio da amiga de um amigo, que, presente no show, deu um desenho a Evan, que colou no bumbo da bateria. Se bem me lembro, ela ainda contou que uma de suas amigas deu carona a Evan até o hotel onde ele estava hospedado.

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Evan em Porto Alegre: camiseta dos “cabeças de limão”

Em Porto Alegre, uma apresentação para uma plateia minguada, de uns 400 espectadores. Nada de muita excentricidade: disseram que a voz de Evan estava um pouco melhor, bem menos rouca de como estava em São Paulo, dias antes. Um momento bonito daquela noite aconteceu quando uma fã jogou no palco uma camiseta escrita com a frase “cabeças de limão”. “That’s Lemonheads in portuguese!”, gritaram. Evan vestiu a camisa e, mais feliz, passou a entregar uma performance com mais entusiasmo.

Agora, a melhor história de todas aconteceu no Rio de Janeiro: Praça Serzedelo Correia, Copacabana, 7 horas da manhã de um dia do mês de maio de 2004. Um gringo de cabelos alongados é avistado tocando seu violão, sentado numa mesa de jogar damas e com um cigarro na boca. Ao seu lado, um mendigo tenta cantar alguma coisa acompanhando os acordes que ecoavam daquele velho Gibson J-45. O forasteiro era, lógico, Evan Dando, que havia sumido depois de um show no Ballroom, em Humaitá. “Ele saía do camarim pra perambular. Subia a ladeira atrás do Ballroom, ia até o fim da rua, sentava no chão e ficava tocando violão. Fez isso umas cinco, seis vezes”, contou José Felipe Calderon, um dos responsáveis pela vinda do cantor ao Brasil, junto à produtora Motor Music. Ele, junto com sua equipe, foi atrás de Evan e o encontrou, naquela manhã, ao lado do tal popular, que por sua vez cantava: “é preciso amaaar as pessoas como se não houvesse amanhããã…” Isso tudo depois de atrasar sua chegada à cidade maravilhosa para uma parada não programada no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

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Evan perdido em Copacabana ao lado de um morador local

Evan Dando e seus Lemonheads, como tantas outras bandas e artistas de sua época, há muito tempo simplesmente pararam de fazer música para contagiar multidões, agitar festivais e explodir em popularidade – até porque nunca quiseram isso – foi algo que aconteceu quando quem cresceu ouvindo punk atingiu o mainstream, e passou. De quase 20 anos pra cá, Evan é cada vez mais um corajoso sobrevivente, movido pelo seu estilo junkie e excêntrico, liderando uma “banda” que meio que voltou às origens: se apresenta para fãs e corações despedaçados e solitários, como ele, entre uma cerveja e outra, nos vários bares e clubes pequenos que, para a nossa sorte, ainda existem e reúnem os que ainda são movidos por uma coisa chamada alternative rock.

Em 2012, conheci Evan nos bastidores de um show que ele havia feito com Juliana Hatfield, em Sydney, Austrália. Perguntei a ele se ele se lembrava dos shows no Brasil. Tudo que ele me disse foi o seguinte: “um show na praia, né?”, ou seja, pra ele resumir três passagens pelo Bananão com “um show na praia”, é porque, como de praxe, o que ficou foi a curtição, a ponto de tudo se apagar de sua cabeça. E disso ele sabe: “não me lembro de quase nada. Peço desculpas aos brasileiros por estar tão bêbado naqueles dias”, contou à Folha, e, veja só, em 2004, antes de suas últimas apresentações por aqui. À Rolling Stone, disse em 2009, época de seu último álbum sob os Lemonheads (“Varshons”), sobre esse último período em terras brasileiras: “eu estava com um problema na garganta. Foi um período péssimo da minha vida pessoal, peço desculpas pelos shows ruins. Gostaria muito de voltar”. Volte, Evan. Estamos esperando. Longa vida ao cabeça de limão!

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